Olho para o jantar e já não o quero mais
A risada alta à noite já não me satisfaz
Barulho de pneu de carro fazendo curva
Deixando na cabeça a imagem turva
Já não parece tão concreto quanto o preto
Úmido do asfalto, o calor do atrito
O tempo retardado, denso, o espaço esticado, vazio
As nuvens de algodão, os fios de polímeros, vácuo
Entre cada gotícula de luz e mesmo por dentro
O que eu quero é o desejo de querer
O que eu quero é querer desejar
O que eu desejo é o alívio de ser
Aquilo que a vida faz com que eu seja
O que acontece quando eu piso numa folha
O que acontece quando estouro uma bolha
Quando então a remexo a brasa na fornalha
E uma centelha escapa por entre as falhas
Das telas da vida, bordadas
Misteriosas linhas cruzadas
E raios de luz passam por dentro
O que fazer da comida no prato?
Que fazer então das roupas no quarto?
Onde deitar a vista, sob lençóis vermelhos
O algodão se queima, eu vejo no espelho
Me encarando desse jeito
Enfrentando a dor no peito
Mas que dor insípida!
O que dizer dos rostos no escuro?
O que dizer dos ventos no claro?
O que dizer da existência enrubescida
Numa tarde enferrujada de tão conhecida
Me esquecendo desse jeito
Ignorando a dor no peito
Mas que dor sem vida!
O que será alegria em eras tão vazias
Uma espada enterrada nas entranhas da batalha
A pegada na face da lua, só mais uma falha
Um cravo na face, entre tantas centenas jazia
Num único crivo dessa existência, meu próprio corpo
E o frio que fazia me converteu no mais escuro escopo
Sob o qual se observa o negro vácuo infinito
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Um comentário:
'Numa tarde enferrujada de tão conhecida'
que imagem maravilhosa, renato!
linda poesia. mesmo, mesmo, mesmo.
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